7 de agosto de 2011

José Delfino Machado

Iniciamos, desde o mês de outubro, uma série de transcrições de antigos jornais de Ribeirão Preto (a partir da década de 1930), contidos no Arquivo Histórico da OSRP, com a finalidade de trazer para o conhecimento público, informações sobre a história da OSRP e da história da música de Ribeirão Preto.


Trancrição do Jornal “Diário da Manhã” de 11/08/1938
Artigo de Antônio Machado Sant´Anna

José Delfino Machado - Foi bem há 26 annos passados que aos meus ouvidos chegaram os accordes maviosos da então bem treinada banda “Filhos de Euterpe”. Na minha velha e tão saudosa memoria Villa Bonfim nos primeiros tempos de minha meninice, as festas se faziam por volta de 1910 a 1915 eram famosas, e como é hoje a “Lapa do Bom Jesus”, de Jardinópolis, era alli, em maiores proporções, correndo especiaes da Mogyana e descendo para a Villa, immensidade de trolys e semi trolys, alem de grande multidão, a pê, das fazendas, dos sítios, das chácaras e dos lugares próximos.
            A villazinha era accordada às 5 horas da madrugada, ao som da marcha batida e do estrondar dos foguetes e morteiros, e a festa decorria por dias seguidos, com leilões chistosos e custosos, dando um encanto peculiar e criando um ambiente festivo, em varias épocas do anno. O ramal do Jatahy foi o “requiem” da Villa...e acabaram se as festas. Os fazendeiros e os mais importantes mudaram-se para a cidade, e a villa foi ficando abandonada, com os últimos remanescentes de uma época áurea, feliz e farta.
            Desde então, José Delfino Machado e seus “Filhos de Euterpe” formaram dentro de mim uma aureola de admiração e enthusiasmo, que era bem compartilhado por todos quantos, mais tarde, já em 1916, ouviram no velho coreto da Praça XV, onde hoje está o “bronze 32” as suas retretas, enquanto que, lá em baixo, em sua volta, o povo se dividia em classes distinctas, cada qual no seu meio, naquella “sui generis” “feerie” nocturna que, às quintas e aos domingos, o nosso jardim apresentava, com a multidão rondando sempre entre 19 e 22 horas, nos círculos desenhados sobre o cimento.
            A fama dos “Filhos de Euterpe”, sob a batuta de José Delfino, tinha corrido mundo. Era a mais famosa banda do interior, e um dia foi a campinas, centro de arte, de civilização, tronco secular da tradição paulista, triumphar na terra de Carlos Gomes na demonstração irretorquível do valor e da tenacidade de um amante da música.
            O modesto, sempre modesto, affavel, bonsoso, com aquela bondade innata do homem do interior, José Delfino era uma figura patriarchal e, mesmo, elemento forte dentro da paysagem de Ribeirão preto, da época memorável da abastança.
            E, elle que era um millionario gosto de arte, um perdulário de sorrisos e compassos, um dia teve o seu waterioo. Qual novo Napoleão da batuta, elle brilhara e vencera em todos cantos, até chegar o momento critico em que todo o seu esforço se quebraria ante o indifferentismos... Findara a restea brilhante da “Filhos de Euterpre”.            
            Mudou-se para São Paulo e, alli, esperava recomeçar a vida, quando a idade alcançou-o de cheio, cobrindo de desillusões todo o seu programma traçado.
            Há annos que não o via. Alquebrado, abatido, retornou. Não como o César após a passagem pela Gallia. Mas como uma águia abatida pelos vendavaes da sorte. E veiu, com os cabellos grisalhos, attingindo quase a grande recta da existência ao mesmo lugar onde colhera os laureis da gloria transitória de todo o verdadeiro artista. Pelo braço da velha companheira, - companheira de todas as horas boas e amargas – quis rever aquelle seu Ribeirão Preto, e ao descer na estação, passou a mão pela testa. Revira as scenas de tantos annos antes, a quando à chegada do rápido, ao levantar o braço rompia o “dobrado” que era ouvido com deleite por todos; distinguia a physionomia dos velhos músicos, desde o trombone até os pratos, na mesma attitude varonil, enthusiasmada, e reboando pelos ares os accordes que a sua própria mão traçara...
            E, ao receber o abraço amigo de Max Bartsch, a visão desfez-se. Duas grossas lagrimas cahiram-lhe pela face encovada. Existiam músicos, sim alli na estação. Não os seus dos “Filhos de Euterpre”, mas amigos que alli estavem para receber o velho maestro, para lhe dar o conforto moral tão precioso na hora extrema da vida. E a Sociedade Musical de Ribeirão Preto, recém-creada toda presente, manifestou ao vencedor de hontem, ao velhinho de hoje, o preito de admiração e de orgulho que todo o musico tem por aquelle que soube fazer da musica uma arte divina, e que, pela música, deu o mais bello de sua existência!
            Velho amigo José ainda existem corações! Fique em nossa terra como se fora tua própria casa. Felizes aquelles que, no final, ainda encontram seres talhados para o bem, como Max Bartsch e Ziza Ribeiro.
            E você, velho maestro, ouça a voz do menino que, na Villa Bonfim, escutava embebido de accordes maviosos dos “Filhos de Euterpe” e sorria, sorria sempre, com aquelle seu ar bondoso, porque Deus escreve direito por linhas tortas.

Gisele Haddad

arquivohistorico@osrp.org.br

Publicado na Revista movimento Vivace Ano II  nº 20 novembro de 2009.