Iniciamos, desde o mês de outubro de 2009, uma série de transcrições de antigos jornais de Ribeirão Preto (a partir da década de 1930), contidos no Arquivo Histórico da OSRP, com a finalidade de trazer para o conhecimento público, informações sobre a história da OSRP e da história da música de Ribeirão Preto.
Especial para o jornal “Diário de Notícias”
Texto de A. Machado Sant´Anna
Desde menino, quando estava em preparatórios para a admissão ao Gymnasio do Estado e fazendo parte daquelle infantil do Commercial de 1918, que eu conhecia Nhá Quina, essa veneranda e bemquista d. Joaquina Gomes, naquella casinha onde hoje se ergue a Cúria Diocesana. Já se passou cerca de 20 annos desse nosso conhecimento. Depois nos mezes de Maio, quando todo engravatado, ia á reza, á espera da fila das Filhas de Maria, era a voz de d. Joaquina no Coro da Cathedral, que convidava a gente a entrar e alli, como uma professora rodeada de alunnos, ella entoava os hymnos sagrados, com o mesmo fervor, com a mesma dedicação, como se fora uma mocinha...
O tempo corre e não nôs convencemos que vamos caminhando para a idade dos cabellos brancos...
Em todos os anniversarios de d. Joaquina, eu era figurante. Apreciava ver aquella bondosa velhinha, a quem eu queria como se fosse “minha vovó” sentar-se ao piano e resmungando com aquelle ar brincalhão, tocar as Arias queridas do “Guarany” e quando a gente lhe pedia um fox-trot ou um tang, Ella, furibunda, virava no banquinho: - Ota gente que não sabe apreciar o que é bão... Onde é que se vio deixar de ouvir o “Guarany” para ouvir essas drogas que andam por ahi?...
E no final tocava tudo o que queríamos e sempre alegre, corriam as horas, sem que se notasse.
Um dia vi Nhá Quina triste. A casinha em que sempre morara, estava ameaçando ruir e precisava mudar-se. Ia sahir daquella rua Tibiriçá, rua bem expressiva pelo nome do cacique de Piratininga, Ella que era bem cabocla – e disso fazia praça – de Campinas, e onde passara quase toda a sua vida aqui, para procurar outro tecto. Consolomo-la – eu e Max Bartsch – e mais tarde fomos fazer a “inauguração da sua nova casinha, no fim da rua Amador Bueno, lá perto da Pedreira...
Nhá Quina era bem a tradicção da cidade. Ella contava tanta coisa interessante para nós que, de jovens, íamos nos tornando homens, sobre aquelle que era o seu guia – aquelle Tonico de Campinas, irreverente e bom – e que Ella adorava com todas as veras de seu coração. E ficávamos a ouvir como fora a infância do gênio musical que ouvira, de Verdi, uma frase expressiva: “Voi Comincia da dove finiscoio...”
Joaquina Gomes. Fonte: CIONE, Rubens. História de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, IMAG. 1987. pág. 424. |
Foi, talvez, um dos meus maiores sucessos de imprensa, quando baseado em Nhá Quina eu pude fazer para o “Diario de S. Paulo” e “ O Jornal”, do Rio, uma longa reportagem sobre os primeiros tempos de Carlos Gomes, em relatório fiel que me fizera a sua irmã mais moça. Tiramos o retrato juntos, Ella ao centro, ladeada por Guiãozinho e por mim e satisfeita, dizia que assim “tava bão”, pois estava entre dois moços, Ella que beirava os 85..., enquanto que as nossas idades, somadas, não chegava aos setenta!
A caravana da Associação Campineira de Imprensa que aqui esteve a convite do centro de Imprensa local (na sua curta, mas gloriosa duração) não podia deixar de prestar carinhosa homenagem do campineiro a uma relíquia campineira. E Jolumá Brito, expressão forte do jornalista hodierno, em vibrante oração, naquella casinha de Nhá Quina, fez muita gente chorar, pelo sentimento, pelo realismo com que traçou o valor de Carlos Gomes e o respeito de que estava possuída ao falar e ao ouvir , ao piano, o imagem viva daquelle glorioso patrício, consubstanciada na figura veneranda, bondosa, vivaz e d. Joaquina!
E há pouco, no seu 87.o anniversario, ao brinda-la, disse-me com lagrimas nos olhos: - “Meu filho, se há terra no mundo em que quero continuar a viver Deus permittir que eu possa morrer e onde eu desejo ser enterrada, é aqui em Ribeirão...”
Pagava, assim, em simples palavras, toda a estima que a cidade lhe devotava.
Depos Nhá Quina sumiu... um dia, há um anno, foi de automóvel para Campinas... Depois voltou. Agora estava de cama. Ao visita-la, zangou-se commigo, por não saber de si, por já ter “esquecido a veia...” e alli, naquelle quartinho, ficamos por muito tempo, a lhe dar coragem, a contar piadas, a fazer com que Ella esquecesse um pouco, o seu soffrimento...
E morreu... como esses passarinhos attingidos pela fatalidade. Morreu sorrindo, rodeada dos seus entes caros e de muitos amigos. Morreu, balbuciando o nome de Deus, e pedindo as bençãs dos presentes, satisfeita pelo quadro que antevia, Ella que temia, tanto aquelle quadro horroroso da morte do irmão querido, lá no Pará distante, e segurando a mão de d. Verica, fechou os olhos, docemente, como um anjo bom que sempre foi, como uma expressão forte de um coração bem formado, a despedir de todos para a sua ultima e interminável viagem...
Descansa em paz, boa velhinha e querida Nhá Quina.
Lá de cima, você ouvirá todas as noites as preces de todos os entes bons deste Ribeirão Preto e valerá por nós que tanto a quizemos e que guardamos dentro dos nossos corações a lembrança imperecível daquella cabocla bem brasileira de Capinas que viveu comnosco 40 annos e que quis morrer qui, que quis descansar o corpo dentro da terra quente, generosa e boa desta Ribeirão Preto.
Joaquina Gomes nasceu em 1852 em Campinas e faleceu em 1939 em Ribeirão Preto.