7 de agosto de 2011

As partes de La Bohème

O maestro, ao apresentar um concerto, sinfonia ou ópera,
possui a partitura completa de todos os
instrumentos. O músico executante tem a parte.

Dividimos a mesa de trabalho ao meio.  Enquanto fazia meu trabalho, às vezes olhava para o lado e lá estava o arquivista, compenetrado, organizando partes da ópera La Bohème (Puccini), ainda antes que os músicos chegassem para o ensaio.  E me dizia: “estas partes são bem antigas, muito interessantes”. Mesmo assim, só ele as manuseava e as preparava para os músicos, com todo o critério para que não se perdesse a ordem, os detalhes, a responsabilidade.
Alguns dias depois, as flautistas me falaram das peculiaridades dessas partes: marcações de músicos, muitas datadas da primeira metade do século XX, desenhos, definições de sentimentos, tudo grafado de punho, das diversas vezes em que as partes foram utilizadas por várias orquestras através dos tempos, desde sua publicação. Dentre as curiosas anotações para a execução, muitas precisavam ser escritas, como um alerta para o músico virar a página rapidamente.
Alguns músicos achavam o material “velho demais”, ou melhor, desgastado pelo tempo.
Percebendo que esse é o tipo de informação que nunca chegaria à plateia, decidi observar e escrever este mês sobre as partes de La Bohème, exatamente esta, utilizada pela OSRP para as apresentações no Theatro Pedro II.

Origem
A partitura da ópera La Bohème é uma publicação de uma das editoras de partituras mais antigas do mundo, a Ricordi. Fundada em 1808 na cidade de Milão por Giovanni Ricordi, a Casa Ricordi tem hoje seu nome mundialmente reconhecido pelas mais belas edições das óperas Italianas. Giovanni começou com uma pequena tipografia que em pouco tempo se tornou a principal casa de edição musical italiana. Em 1814 a casa é proprietária de 800 partituras, passando a 10.000 edições próprias em 1834, contendo as óperas dos três maiores autores da época: Rossini, Bellini, Donizetti. Em 1864, acontece a abertura da primeira sucursal em Napoli, seguindo para Firenze em 1865, Roma em 1871, Londres em 1878, Palermo e Paris em 1888. 
Em 1924, como uma empresa centenária de história e tradição, a Ricordi chega a América do Sul abrindo sua filial em Buenos Aires e, finalmente, em 1927, chega ao Brasil, com escritório em São Paulo, hoje situado no bairro Campos Elíseos.
Vestígios
As edições possuem encadernações primorosas, enriquecidas por grafias dos músicos que já a utilizaram. No interior das partes de alguns instrumentos, são notadas inscrições como: “infindável outubro de 81”; “1982 - aposentadoria” com um sol desenhado ao lado; desenho de relógio marcando o horário de fim do espetáculo atrasado e diversas assinaturas, ano de execução e nome de orquestras. Podem também ser observados desenhos de óculos em trechos da música onde o músico deve estar mais concentrado e atento, além de outros traços que ainda necessitam investigação, incluindo o desenho de um enorme disco voador com astronauta.
Outra observação, esta geralmente feita por musicólogos em publicações e manuscritos, é a sujeira no canto inferior direito das páginas, região das viradas. Geralmente quando vemos um documento antigo podemos dizer “que beleza, como está limpo e preservado”, quando na verdade isso significa que a partitura não foi muito utilizada.  Nas partes de La Bohème essa região é muito suja pela oleosidade dos dedos, demonstrando que são antigas e que foram muito utilizadas. O funcionário da Ricordi, Osmar Nogueira, afirma que esta publicação em específico é italiana, chegou a São Paulo com a inauguração da editora e, desde então, esta é a parte mais utilizada e a ópera mais apresentada do Brasil.
As partes foram devidamente devolvidas à editora dias depois das récitas, com diversas assinaturas e mais uma inscrição para sua história: Theatro Pedro II, Ribeirão Preto, 2011.









Gisele Haddad

arquivohistorico@osrp.org.br


Publicado na Revista Movimento Vivace Ano IV nº 31 abril de 2011.